sexta-feira

Os exageros




A vontade de conversar e as viagens intelectuais, me fazem mais falta do que o ar...

Sinto desejo dos risos, dos deboches, dos comentários, das conclusões precipitadas, dos ângulos tortos, das visões de quem não enxerga, dos comentários maldosos e dos despretensiosos, dos fatos, das experiencias da maturidade nas extensões dos detalhes, da imensidão dos pequenos laços, das mentiras envolvidas na nódoa dos sabores e dos goles...

A falta da troca me sufoca!

A rotina de serviços sem muita interferência intelectual só é uma questão de tempo, não tem sofrimento que resista e que não se dilua no tempo... Não há! Hoje posso imaginar situações horríveis em que as pessoas passam e penso não na facilidade que não tiveram, mas penso em como só, uma questão de hábito e tempo. 

Tempo e tempo e tempo e tempo... 

Com o tempo as coisas laceiam, as coisas afrouxam e dissolvem. Nada indolor, mas passam... E quando menos se espera, você sente-se bem... 

Imaginei celas, quando há luta pela sobrevivencia ao invés de viver, para o vivenciar. 


É notório que os dias são mais simples, pois é só seguir o mesmo roteiro, não há surpresas, máscaras ou intérpretes, voce acorda e sabe como ele vai terminar...


Só precisa respirar para que não perca o fôlego e o foco, que vai terminar no prazo, no tempo e como se esperam. 

As emoções não fazem parte do cronograma, as definições não permitem deslizes e sensações, é necessário concentração para executar seu ser de acordo com as normas pré estabelecidas... 


Os diálogos devem ter sentido, devem ser de forma que não movimente corpos, nem rostos, da boca deve sair palavras afáveis, nada pode conturbar muito o ambiente, pois o ciclo deve continuar, nas mesmas circunstancias e os fatos, não se desviam. Manter-se assim mantêm as convivências e agrada a plateia que não é ávida por discussões ou abusos, os lábios têm lugar certo para ficar, a pele é rígida, o rompimento machuca, marca. 


Contenha-se nos seus pensamentos, pois eles não são sonoros, contenha-os na caixa, na alma. Guarde tudo para os exagerados, produtores de conversas e contradições... 


Acumuladores de barulhos!


Exageros são sempre exageros e exageros nunca cabem nem em loucos e nem em tolos, são exageros...


Os exageros transbordam e sempre passam da conta e das medidas.


Os exageros gritam, não falam...


Os exageros não cabem em nenhum espaço...


Os exageros ocupam muitas coisas, atrapalham e aparecerem exageradamente demais para que as pessoas possa gostar.


Os exageros saem, não ficam. Os exageros irritam. Expelem e retraem. Os exageros causam e movem. O exagero peca, o exagero não dorme, o exagero não escolhe, o exagero provoca, o exagero sofre, porque é exageradamente rejeitado.


Exageros de Mãe
Millôr Fernandes

Já te disse mais de mil vezes que não quero ver você descalço. Nunca vi uma criança tão suja em toda a minha vida. Quando teu pai chegar você vai morrer de tanto apanhar. Oh, meu Deus do céu, esse menino me deixa completamente maluca. Estou aqui há mais de um século esperando e o senhor não vem tomar banho. Se você fizer isso outra vez nunca mais me sai de casa. Pois é, não come nada: é por isso que está aí com o esqueleto à mostra. Se te pegar outra vez mexendo no açucareiro, te corto a mão. Oh, meu Deus, eu sou a mulher mais infeliz do mundo. Não chora desse jeito que você vai acordar o prédio inteiro. Você pensa que seu pai só trabalha pra você chupar Chica-Bon? Mas, furou de novo o sapato: você acha que seu pai é dono de sapataria, pra lhe dar um sapato novo todo dia? Onde é que você se sujou dessa maneira: acabei de lhe botar essa roupa não faz cinco minutos! Passei a noite toda acordada com o choro dele. Eu juro que um dia eu largo isso tudo e nunca ninguém mais me vê. Não se passa um dia que eu não tenha que dizer a mesma coisa. Não quero mais ver você brincando com esses moleques, esta é a última vez que estou lhe avisando.

Texto extraído do livro "'10 em Humor", Editora Expressão e Cultura - Rio de Janeiro, 1968, pág. 15.

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Millôr Fernandes e sua obra em "Biografias".